Um vento muito jovem com o estranho nome de Al-Merid vivia a vida brincando como uma criança num deserto dentro de si mesmo. Montava e desmontava seus castelos de areia, armava e desarmava as "dunas"de maneira a mudar constantemente de paisagem (para evitar a monotonia), apagava as pegadas dos viajantes e as passadas vigorosas dos camelos...
Vivendo assim, intensamente, o presente, pois o passado já se fora (e ele não tinha memória do tempo) e o futuro estava por vir (e não o interessava muito nem se desgastar, imaginando-o...)! Mas, eis que se acabara o tempo das brincadeiras e, talvez por isso, ouviu uma voz que vinha lá do seu centro:
- Al-Merid, Al-Merid! Por que perdeste tanto tempo com miragens e oásis, largatos rastejando em pedras rachadas, pelos outros ventos, e cobras... cocos
secos?!... Muda, enquanto é tempo!!!
Al-Merid afastou-se, então, do deserto e foi habitar sobre um mar diferente que o vento Minuano havia apresentado nos seus sonhos aventureiros... Pensando
haver encontrado seu verdadeiro habitat, continuou brincando de forma diferente. Ora leve, ora furiosamente, movendo as ondas desde o seu interior,
revirando barcos, rebuscando sempre os baús ocultos com tesouros acumulados pelo tempo e apossando-se de jóias, medalhas e honrarias que pertenciam aos mortos-vivos!...
Mas, novamente, cansou das brincadeiras, fez silêncio e tornou a ouvir:
- Al-Merid, Al-Merid, o que é uma gota no oceano? Busca aquecer-te ou morrerás gelado nos pólos para onde te levarão teus pensamentos e ações inconseqüentes...
Al-Merid olhou em redor, nas montanhas longínquas viu fumaça. Ora, onde há fumaça, há fogo, pensou. E para lá, se dirigiu, pois estava gelado até a alma e desejava aquecer-se. Voou vertiginosamente e ficou frente a frente com um vulcão que preparava cuidadosamente sua lava para descer o morro matando a vida para, depois de séculos, transformá-la em ouro negro... Apaixonadíssimo
pela beleza terrificante do vulcão, soprou, soprou, soprou... Soprou tanto que inchou as suas bochecha de vento, empurrando cinza e labaredas, detritos e lava para lá e para cá...
Estava nesse incansável trabalho, porque o vulcão exigia muito dele, quando passou uma ventoinha leve e graciosa, fina e ágil, que piscou o olho para ele. Al-Merid largou tudo e seguiu-a por morros e florestas, praias e rios, lagos e cachoeiras encantadas... Claro, era um vento-jovem!... Já pensava em estabelecer-se e construir um belo "palácio de vento"secreto e somente para os dois, num tempo eternizado num único momento, quando, pela terceira e última vez, ouviu a voz interior que, como címbalo forte, cantava aos seus ouvidos:
- Será este mesmo o teu destino? É isto realmente que tu desejas? Gerar ventos e colher tempestades, maremotos? Furacões do teu próprio sentimento? Por que não procuras instruir-te primeiro? Se o amor for verdadeiro, noutra
curva do tempo o encontrarás certamente...
Al-Merid foi se afastando, afastando... De ré e devagar, bateu com os costados numa montanha gelada muito grande, o Himalaia. Olhou-a bem e percebeu que, no alto, havia um templo (reconheceu-o até porque já sonhara muito com
ele)!
Subiu, subiu, enfrentando os maiores perigos entre abismos e trevoas muito escorregadios, e ainda outros com passagens estreitíssimas até que o alcançou. E encontrando-o, avistou um velho tão velho que, parecendo adivinhar a morte próxima, lhe disse:
- Al-Merid, Al-Merid, finalmente chegaste! Espero-te há séculos para seres o meu discípulo. Quero ensinar-te tudo que aprendi sobre a vida, fora da vida, porém no centro dela, meditando e orando pelo bem da humanidade. Em troca, deves fazer a única coisa que sabes: refrescar-me e varrer nosso templo!!!
Al-Merid, meio assustado, porque aquela era a voz que ele escutava três vezes e não sabia como aquele velho o havia acompanhado, aceitou.
Varreu pátios internos, abriu suas próprias janelas para o Sol, soprou as teias de aranha para longe de seu palácio!
E era só abrir e fechar, limpar e refrescar, abrir e fechar...
E, às vezes brincar na cabeleira e barba compridas e brancas do seu sábio, que sorria muito e, estranhamente parecia bastante com ele mesmo, o vento!...
Al-Merid ali envelheceu, vendo o monge sair do corpo tantas e tantas vezes, tantas e tantas vezes voltar a ser criança para receber instruções na sua "nova casa" (seu templo), que, finalmente, compreendeu:
É fácil... juntar grãos de areia (pequenas questiúnculas que estão sempre mudando de posição a favor do vento), mover ondas internas (renovando sentimentos e guardando mágoas que se tornam gigantes e acabam afogando-nos), achar tesouros externos (que enfeitam apenas mortos-
vivos descuidados com as suas verdadeiras vidas), amar e esquecer-se (dos amores individuais, os mais profundos para entregar-se a outros amores mais espirituais, mais universais)...
Mas instruir-se e "crescer" leva tanto tempo que, na maioria das vezes, uma só vida não dá para alcançar a verdadeira sabedoria do Ser!... E numa breve
retrospectiva, analisou seus passos: enquanto era uma criança espiritual, vivera num deserto, aprendendo com suas ações inconseqüentes; na juventude, despertara as ondas de emoções desencontradas no seu mar interior
depois, conhecera o calor do amor, para então renunciar e buscar a sabedoria.
Foi só aí, então que sentenciou para si mesmo:
"O impossível me acordou. Não podendo, eu quis mais. E vi que quanto menos eu tivesse mais seria possível ter. Agora, assim, eu posso ser tudo que não fui num tempo que não era para ser".
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